home

search

23/09/1374 - Carta 13

  No silêncio da madrugada, bateram à porta. Lilian saiu correndo da cozinha para atender. Mas, para ela, pouco importava quem batia. O importante era a crian?a deixada aos pés da porta, muitas vezes sem prote??o alguma do frio e da chuva. Esse era o caso da recém-nascida daquela noite. Lilian rapidamente pegou a crian?a no colo e levou-a para dentro.

  “E dessa vez?” perguntou Madre Zeta, descendo as escadas.

  “Mais uma menina” disse Lilian.

  “Mais uma…”

  “Ela n?o chorou. Acho que pode dormir no ber?o com as outras.”

  “Ah, ótimo” disse, subindo as escadas. “Boa noite, Lili.”

  No dia seguinte, tocou-se o sino das seis horas. E antes que a corda fosse puxada para a quarta badalada, Lilian já havia se levantado da cama de feno. Limpou as remelas dos olhos e foi andando até a janela, com cuidado para n?o pisar nas camas dos irm?os, e abriu as cortinas. Enquanto os meninos se enrolavam ainda mais nos len?óis de pano para fugir da luz, as meninas, de pé, penteavam os cabelos.

  Dormir por último e acordar primeiro foi um costume que Lilian precisou incorporar em sua rotina quando se tornou a crian?a mais velha do orfanato — e tinha apenas 14 anos. Na Dinaev das décadas de 20 e 30, aquele era o único lugar que as crian?as que perderam os pais na guerra ou na fome tinham para onde ir. Porém, isso n?o significava que a perspectiva de vida delas seria de qualquer forma boa. Os pequenos quartos beiravam a superlota??o, e a comida escassa era uma concess?o que o status quo regente poderia negar a qualquer momento, por qualquer motivo. Para aquele primeiro mês do Ver?o, quando as colheitas e os gr?os ainda eram abundantes, a comida era a menor das preocupa??es das crian?as.

  Lilian pegou a neném da noite anterior no colo e andou até a porta do quarto — dessa vez, dando uns chutes naqueles ainda fingindo estar dormindo. Os mais velhos iam ajudando os mais novos a se arrumarem e preparavam as atividades do dia. Mas naquele dia n?o haveria brincadeira; o orfanato esperava a visita de uma pessoa muito importante.

  “Eu quero todo mundo bem vestido, tá bom?” disse Lilian. “Ele vai chegar daqui a pou—”

  Bateram à porta. Lilian nem terminou o que teria dito e foi aos pulos para a entrada. Madre Zeta, descendo as escadas, fez um sinal com as m?os para Lilian esperar um pouco. Outra batida, dessa vez mais forte. E a Madre chamava as crian?as com toda a calma do mundo. A terceira batida foi interrompida quando a porta se abriu.

  “Bom dia, Comandante!” disseram as crian?as em coro.

  Lerel entrou na sala para a recep??o com um sorriso unilateral no rosto e disse:

  “Crian?as muito educadas, Madre Zeta. Meus parabéns.”

  “Nós preparamos um teatro para…”

  “N?o será necessário. Vamos ao que interessa. Quantos meninos a senhora tem para oferecer?”

  “Meninos… Esses s?o os nossos três com mais de 12 anos.”

  “Só três? Como pode?”

  Stolen from its rightful author, this tale is not meant to be on Amazon; report any sightings.

  Um dos que estavam com Lerel sussurrou algo em seu ouvido.

  “Canalhas! E eu n?o sabia disso? Todos ser?o castrados e degolados.” Virou-se para Madre Zeta. “Se os meninos forem encontrados com vida, ser?o muito bem tratados, Madre. Mas isso n?o muda o fato de que meu batalh?o está em falta de pelo menos cinco soldados. Sinto que a guerra está finalmente se aproximando do fim… Mas a hora exata ninguém pode saber. Enquanto isso, os Cianum se reproduzem como ratos, e eu preciso de soldados para repor meus exércitos por va?ios anos. Se a senhora n?o colaborar…”

  “Eu vou” disse Lilian. “Eu conto por cinco soldados.”

  “Lilian!” Madre Zeta tapou a boca da garota. “Ela n?o quis dizer isso, ela…”

  “Bobagem, Madre! Deixe ela falar. Isso, venha aqui perto.” Lerel se agachou para ficar no nível dos olhos de Lilian. “Você quer lutar?”

  “Quero.”

  “Por quê?”

  “Porque os meus pais…”

  “Shh. N?o, n?o. Você quer ir no lugar dos seus irm?os. N?o é por isso?” Lilian n?o respondeu. “Tudo bem se for! Lutar pelos seus irm?os é o motivo mais nobre que existe! Cá entre nós, foi por isso que eu entrei no exército.”

  “Verdade?”

  “é claro! E sabe o que mais?”

  “O quê?”

  “No dia seguinte, o meu capit?o colocou fogo na minha casa e matou a minha família na minha frente.”

  “Comandante” disse um dos soldados. “Ela é só uma crian?a…”

  “Eu também era. Crian?as fazem coisas idiotas.” Lerel pegou a bochecha da neném no colo de Lilian. “Se você for embora, quem vai cuidar dessas crian?as?”

  Lilian olhou para trás. Madre Zeta sacudia a cabe?a, dizendo n?o. As crian?as olhavam para ela com medo, algumas mal conseguiam segurar o choro. Aquela era a sua família, ela n?o poderia abandonar seus irm?os por nada. E era exatamente por isso que deveria ir embora.

  “Se n?o eu, quem vai lutar por elas?”

  “Hum… Muito bem” disse, desarrumando o cabelo de Lilian. “Madre, vou levar os três meninos e essa aqui.”

  “N?o!” protestou Lilian. “Eles n?o, eu!”

  “Uma boa médica de campo pode valer por dois combatentes, n?o mais que isso.” Lerel deu um sinal para que os soldados fossem entre as crian?as levar os meninos. “Determina??o n?o vence guerras. Homens vencem guerras.”

  Lilian encheu-se de raiva com aquela injusti?a e mordeu os próprios lábios até que come?assem a sangrar. Quando Lerel viu a cor daquele sangue, ordenou que os soldados parassem no mesmo instante.

  “Você tem sangue Ichorum! Por que n?o disse antes?” Lerel olhou para Madre Zeta. “Por quanto tempo esteve escondendo isso de mim? Essa garota n?o vale por cinco… Vale por cem soldados!”

  Lerel arrancou a crian?a do colo de Lilian e a entregou à Madre. Porém, antes que pudesse levar a garota do orfanato, todos ouviram um estrondo do lado de fora. E outro, seguido de outro, e ainda mais um depois daquele. Madre Zeta correu com as crian?as para dentro do quarto, onde estariam mais seguras; e Lilian ficou com Lerel e os soldados próximo à entrada.

  O orfanato ficava em uma área neutra da cidade. Havia um acordo silencioso entre todos os povos de n?o agress?o mútua em regi?es habitadas unicamente por civis — atacar um orfanato era uma quebra nada sutil desse contrato. Mas as tropas lideradas por Kleyvan, o Mercenário, acreditavam que a cabe?a de Lerel valia mais do que as vidas de centenas de pessoas, inclusive crian?as.

  Lerel sentou-se aos pés da escada e tirou uma sacola do bolso interno da sua farda. Desenrolando o nó, pegou dali um punhado de gr?os e ervas e come?ou a mastigar. Lilian lambia os próprios lábios e suas m?os tremiam, olhando para fora do orfanato.

  “Quer?” Lerel ofereceu a mistura para Lilian.

  “Você n?o vai fazer nada?”

  “Como assim?” Lerel comeu a oferta recusada. “Já está feito.”

  Os barulhos de explos?es continuaram por mais alguns minutos, interrompidos de vez em quando por gritos e choros, diminuindo de intensidade aos poucos até restar apenas silêncio. Um guerrilheiro vestido de campesino entrou no orfanato, e n?o precisou dizer nada. Lerel levantou-se, segurou Lilian pelo bra?o e disse:

  “Vamos conhecer a sua nova casa?”

Recommended Popular Novels